Mashallah – ‘vivendo’ do Ártico à Ásia de bicicleta

“Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu”.

Mevlana Jalaluddin Rumi – poeta sufi persa do Séc. XIII

Onde mora a necessidade de abandonar-nos para encontrar-nos? De que lugar vem a urgência que temos das contemplações? O que está tão delicadamente implícito na distinção entre fuga e busca? Qual a magia transformadora sutilmente escondida no exercício da liberdade? Mashallah – do Ártico à Ásia de bicicleta, obra literária do santista Israel Coifman, nos faz convites ao questionamento, enquanto nos brinda, generosamente, com um relato pleno de humanidade tecido ao viajar de bicicleta por entre incríveis emoções, paisagens, culturas e pessoas.

___________________________

A ousadia, enquanto dose ironicamente diminuta de incompreensão da realidade, me daria a chance de dizer, sem medo de equivocar-me, que Israel Coifman é um jornalista, documentarista, fotógrafo e um artista das imagens e das palavras. Enquanto tece seu texto, Isra (como carinhosamente é chamado pelos seus afetos) nos sugere revelar que a viagem reside ou habita, primeira e de forma derradeira, dentro do viajante.

É nesta constante dualidade entre dúvida e certeza que somos colhidos pelo ciclonavegante e levados à próxima curva de montanha, a qual não deixa revelar de antemão a sequência da ascensão ou o despencar para o abismo.

Não, Mashallah – o livro – não é óbvio e nem tem a pretensão de encerrar nada. Pelo contrário, ele oferece uma oportunidade de perceber ser bem-vinda a ampla abertura à imaginação.

Tudo isso a fim de que possamos acompanhar e disfrutar, com assombro, desde a hipnótica manifestação das auroras boreais à sensível acolhida de um desconhecido viajante de bicicleta no seio de uma família; da mesma forma, encantar-se com a oportunidade única de se ter avós ucranianos por um dia, ou até mesmo, viver a irretocável sensação de estar lendo um livro a milhares de quilômetros distante de onde ele foi vivido, sentido e germinado. E tudo, absolutamente tudo, parece estar tão próximo.

Enquanto este cenário toma forma, a emoção desliza pelo rosto e tinge algumas páginas. O livro de Israel oferece inúmeras oportunidades de nos abrirmos à emoção e tingirmos páginas da vida com ele.

Durante os fragmentos de tempo-espaço que cabem no giro completo do pedivela ou em uma leitura profunda, o cicloviajante é empurrado por gelados ventos e sua ventura o acompanha, surpreendentemente, afinal, mashallah (Deus quis)! E aqui, honestamente, não cabe aplaudir a superação dos desafios físicos, solidão, risos e choros do ciclonauta, porque estamos falando de uma grande viagem de bicicleta, não é mesmo? O que poderíamos esperar?

Percebo que, enquanto lemos Isra, somos impulsionados a uma delicada reverência tanto às indomáveis manifestações da natureza quanto à maravilha do pertencimento que está guardada nos encontros. Vivemos para encontrar-nos mutuamente. Explico-me.

De forma curiosa, minha sina de escrever sobre as pessoas que amo fez, uma vez mais, sua graça: acesso as primeiras páginas de Mashallah e encontro, prefaciando o livro, as palavras de Juli Hirata – a quem reconheço como uma força da natureza sobre duas rodas. Nos dias em que permaneço submerso na leitura, ao mesmo tempo que as auroras contam segredos a Israel ao pé do ouvido da alma, assisto a mais um vídeo do Olinto e da Rafaela em seu canal do YouTube. E quem é a pessoa citada por eles em um agradecimento pelas dicas dos melhores caminhos em direção à Pamir Highway? Ninguém menos do que Israel. Então, reforço, que vivemos para encontrar-nos mutuamente num mundo imensamente pequeno.

Enquanto avançamos na rica leitura pelos territórios de 19 países, passamos a confirmar que as surpresas que os caminhos nos guardam são como presentes dispostos sobre a trajetória para serem abertos no momento certo. Algumas destas dádivas nos chegam sob a forma de uma chuva refrescante, uma manhã de sol após uma noite gelada ou por intermédio de uma simples e não menos reconfortante xícara de çay ou de café. Mashallah!

Mais que tudo, para mim, Mashallah – o livro – é um relato de experiências tão sensíveis a ponto de corroborar que, por vezes, o nada que uma pessoa tem a nos oferecer é, possivelmente, o tudo que ela tem naquele instante, me ensinou o uzbeque Mohammed. No silêncio das noites e das infinitudes, Isra, desde tão longe nos aproxima da humildade generosa, da gentileza arrebatadora, enfim, daquilo que alguns chamam de filoxenia e eu, recorrentemente, chamo de xenophilus – amor ao estranho.

Ao passo dos capítulos de Mashallah – o livro – constatamos que aquele super poder que os cicloviajantes têm de ser invisíveis varia na percepção de quem tem ‘olhos de ver’ e contrasta com aquilo que fica na mente e na memória das pessoas que os percebem, pois elas também jamais serão as mesmas. Quiçá, em seus pensamentos, resida por algum tempo uma série de questionamentos que vão desde ‘o que aquele maluco está fazendo de bicicleta por aqui’, ‘ele é tão pobre que não poderia viajar de carro’, ou ainda talvez, ‘quem será aquele sujeito? o que ele viu e viveu? a quem ele ama?’

É certo que, mesmo sem querer, todo cicloviajante vira paisagem e sonho por entre os territórios e corações que traspassa. Mashallah – o livro – nos atravessa a alma na velocidade da bicicleta, das estações, dos sorrisos… das auroras.

Das inúmeras boas coisas que a obra de Isra me fez pensar, está o fato de que nosso gene nômade (kazak, em turco), DRD4-7R, tem acompanhado a humanidade de uma forma tão maravilhosamente especial a ponto de nos permitir ser ‘uma espécie em viagem’, como poetiza Drexler, não é mesmo, amada vovó Riveca?

Então, para finalizar meus devaneios, penso que Mashallah – do Ártico à Ásia de bicicleta – nos presenteia, também, com a ideia de que os caminhos que cruzamos pedalando nos preparam, quilômetro a quilômetro, para estarmos prontos a receber em nossa vida improváveis amizades que nos transformam em sujeitos ainda melhores, afinal, vivemos para encontrar-nos mutuamente, Insha’Allah!

Deixe sua opinião

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Aqui você encontra dicas de promoções e cupons de produtos no precinho para você e sua bike.
Além de roupas, suplementos, acessórios e muito mais!
Faça parte da nossa comunidade! Aqui você vai pedalar mais e economizando muuuito!

Contato